27.9.18

Cosme, Damião e Crispina

Hoje é dia de Cosme e Damião e por isso quero contar essa história. Como eu nasci em setembro, minha mãe, como é tradição na Bahia, resolveu fazer uma promessa: oferecer caruru no dia do meu aniversário, até que eu completasse 15 anos. E assim foi. Todos os anos, um grupo de mulheres ia lá pra casa preparar a comida pro santo. Pouco antes da festa, eu saía pelas ruas com minha mãe para convidar sete crianças mais pobres para comer comigo. Chegando em casa, uma esteira grande de palha era estendida, eu servia todas as crianças e depois sentava pra comer junto com elas. Caruru, vatapá, arroz, galinha de xinxin, pipoca e caramelo de mel. Lembro que não gostava muito de caruru na época, mas tinha que comer nem que fosse uma colher. Tirando esse detalhe, eu sempre gostei muito de fazer esse pequeno ritual, achava que estava fazendo uma coisa importante. Geralmente durante a refeição - e esse era o melhor momento - minha mãe deixava de ser minha mãe e virava um erê, a Crispina. Eu achava aquilo muito engraçado e um tantinho assustador (e se minha mãe não voltasse mais?), mas adorava ver a Crispina/minha mãe falar igual a uma criança pequena, me pedir pra colocar mel na sua mão e depois lamber. A parte que eu mais gostava - e a que mais achava estranha - era quando Crispina passava os recados, coisas que eu depois tinha que falar pra minha mãe. Eu escutava tudo com muita atenção, as vezes ela repetia pra ver se eu tinha entendido direito. Era a Crispina/minha mãe mandando recado para minha mãe/mãe. E eu era a mensageira desse canal misterioso. Lembro do meu pai, médico, sempre meio cético, encostado na porta, observando tudo de longe. Depois ele dizia: isso é coisa da nossa cabeça, a gente não conhece nem 10% do nosso cérebro. 
Eu acho que foi ali que comecei a me formar como atriz. Minha mãe era a Crispina que era minha mãe. Isso não é maravilhoso? Não é esse o paradoxo do ator? Ser e não ser, eis a questão. Meu pai era o observador distante, aquele que duvida de tudo. Hoje, quando estou atuando, me sinto um pouco no papel da minha mãe e do meu pai, sou observadora e observada, ao mesmo tempo. Esse também é um estado que tenho praticado na yoga, mas aí já é uma outra história. 
Depois dessa refeição/ritual, a Crispina ia embora, os outros convidados iam chegando e a festa continuava. Eu passava todos os recados e orientações da Crispina/minha mãe para minha mãe/mãe. Quando acabava a festa, lá íamos nós, eu e minha mãe/mãe procurar um matinho bem verde numa encruzilhada para fazer a oferenda, conforme Crispina havia dito. Era um momento muito especial, lembro de sentir meu corpo vibrando. Missão cumprida.
Essas memórias são muito doces na minha vida. Hoje amanhecei com elas muito vivas dentro de mim. Me sinto muito grata por ter experienciado tudo isso. Obrigada mãe, obrigada pai. Obrigada Crispina, sinto você sempre perto de mim. Você nunca foi embora, nunca irá, eu sei. 
Que toda a doçura e alegria dos erês abençoem nosso Brasil hoje. Somos feitos desse pó luminoso, desse mistério sincrético e queremos que essa mestiçagem seja verdadeiramente respeitada. Não só os brancos, não só os cristãos, não só os homens, não só os héteros. Todos. Todas. Todes. Todxs. Verdadeiramente respeitadxs. Vai Brasil, nós podemos, nós temos essa força e essa alegria.

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